14.10.06

Mentir é normal?

Em entrevista à VEJA da próxima semana (Edição 1978) o filósofo David Livingstone Smith, diretor do Instituto de Ciência Cognitiva e Psicologia Evolutiva da Universidade de New England, nos Estados Unidos, assegura que o ser humano é mentiroso por natureza e que a mentira é útil à sociedade. Defende ele que o mundo seria um caos se todos decidissem falar a verdade. Leia a seguir alguns trechos:

"Veja – Por que mentimos?
Smith – A mentira está por toda parte. Ela é normal. Todos mentimos e quem diz o contrário mente. Temos dificuldade em nos reconhecer como mentirosos porque há um julgamento moral contrário. Mentimos para obter vantagens e para nos proteger de algo, o que significa que estamos, de certa forma, passando a perna em alguém. Quem mente bem costuma se dar melhor do que quem não consegue fazê-lo.

Veja – Por que acreditamos nas mentiras dos políticos mesmo sabendo que eles são treinados para nos enganar?
Smith – Porque é mais fácil e seguro para nós mesmos nos convencermos delas. Quando alguém diz com convicção que vai melhorar a sua vida, como não querer acreditar nisso? Podemos até desconfiar em um primeiro momento, mas, como é um alento crer nessa hipótese, acabamos nos convencendo. A sensação de prazer trazida por acreditar em algo é inebriante. É um grande prazer para os americanos acreditar que são superiores ao resto do mundo. Se pensassem nisso por cinco minutos, saberiam que não é verdade. Mas não o fazem porque isso lhes traz muita satisfação. É impressionante como nossas escolhas sobre aquilo em que acreditamos são baseadas no que nos faz sentir bem, importantes, esperançosos. É com isso que os políticos jogam.

Veja – Qual a diferença entre uma mentira contada por um político e a contada por uma pessoa comum?
Smith – A contada por políticos tem conseqüências mais graves, mas, na média, não há muita diferença. Passamos a vida fabulando coisas, uma boba aqui, outra mais inocente ali, e as grandes também. É preciso ter em mente que não se trata de maniqueísmo. Da mesma maneira que os políticos mentem, nós também nos enganamos porque queremos acreditar em suas mentiras.

Veja – Como saber que um político está mentindo?
Smith – Isso é muito difícil. Pesquisas mostram que apenas um em 1 000 indivíduos consegue detectar sinais de mentira em outra pessoa. No caso dos políticos, profissionais treinados só conseguem identificar mentiras em 10% dos casos. Políticos são brilhantes em nos distrair com o que dizem. Aqueles que não conseguem mentir bem nunca chegam lá. É uma tragédia pensar que a política é uma das atividades mais vitais nas sociedades em todo o mundo pois é uma das mais irracionais e desonestas que existem.

Veja – Não existe política sem mentiras?
Smith – Infelizmente, não. A democracia é algo maravilhoso, mas funciona por um processo de venda e manipulação. Nesse processo, a mentira é intrínseca. A única proteção que temos contra isso é sermos céticos, críticos e podermos contar com uma imprensa justa, livre e que defenda os cidadãos.

Veja – Quando alguém diz que "não sabe de nada" sobre um fato em que todas as evidências provam o contrário, isso é mentir?
Smith – Qualquer coisa feita para iludir é uma mentira. Omitir-se ou inventar um padrão técnico para se explicar sobre algo é mentira, sim. As pessoas usam essas coisas apenas para escapar e, efetivamente, escapam.

Veja – Existem meia mentira e meia verdade?
Smith – Algumas vezes mentimos dizendo a verdade. Digamos que eu não queira que você saiba algo sobre mim. Posso relatar esse dado de uma maneira tão exagerada que você o desconsideraria. Não menti, mas você não acreditou. Ou seja: manipulei. Existem graus de distorção no que dizemos uns aos outros, mas acho que o que caracteriza a mentira é fazê-lo com o objetivo de vantagem.

Veja – Existem mentiras aceitáveis?
Smith – Claro. Falar com alguém de quem você não gosta, omitir seu real estado de espírito, dizer que a pessoa está magra, quando na verdade ela está gorda, tudo isso são mentirinhas do dia-a-dia que fazem parte dos padrões sociais de convívio. A mentira ocorre naturalmente a todos nós, e muitas vezes não sabemos que estamos mentindo.

Veja – Com que freqüência as pessoas mentem?
Smith – Há uma pesquisa relevante feita pelo psicólogo Robert Feldman, da Universidade de Massachusetts, mostrando que as pessoas contam três mentiras a cada dez minutos de conversa. É interessante, mas é uma definição estreita da mentira. Não se mente só com palavras. Um político, querendo esconder alguma coisa ou estando inseguro do que diz, pode chegar a um palanque ou a um debate na TV e falar de maneira pomposa, mostrar-se indignado, aparentar confiança. Ele vai convencer muita gente. Precisamos observar o comportamento desonesto de forma muito mais abrangente. E, quando o fizermos, descobriremos que o ato de mentir é muito mais amplo do que se imagina.

Veja – Quando mentimos mais?
Smith – Em geral, quando queremos algo de outra pessoa e esta não quer nos dar. Nas conquistas amorosas, ocorre sempre. Queremos parecer mais atraentes sexualmente ou mais inteligentes do que somos. Nas relações de trabalho, mentimos sobre nossas habilidades e competências. É crucial saber que isso ocorre involuntariamente. É como respirar.

Veja – Quem mente mais, o homem ou a mulher?
Smith – Os homens tendem a dizer que as mulheres mentem mais, e vice-versa, mas não acho que exista alguma evidência disso. Acredito que mentem igualmente. Tudo depende do que se quer obter.

Veja – Nascemos mentirosos?
Smith – Contar mentiras é uma tendência tão internalizada no ser humano como a capacidade de falar e caminhar. Não temos a escolha de não mentir. Quem não mente, no sentido estrito da palavra, são os autistas. Para que possamos mentir, precisamos perceber como as pessoas nos vêem. Para quem não entende isso, como os autistas, a idéia de esconder a verdade não faz sentido. Não é por uma superioridade moral, mas por uma deficiência neurológica que os torna inábeis para perceber essa sutileza. Então, com exceção dos autistas, somos todos mentirosos por natureza.

Veja – O senhor mente muito?
Smith – Sou péssimo mentiroso."

Assinantes de VEJA, leiam entrevista completa aqui.

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