10.11.06

Globalismo Jurídico - I

A partir de hoje o Blog do Gomes trará à lume o ensaio "Globalismo jurídico: a nova face do direito", de autoria do advogado Gildson Gomes dos Santos.
O trabalho tem como principal objetivo redefinir e estruturar os elementos do sistema jurídico, a partir do paradigma filosófico denominado procedimentalismo jurídico, cujo principal fautor é o filósofo alemão JÜRGEN HABERMAS.
Segundo G. Gomes dos Santos, as teorias fundadas na tradicional filosofia da consciência são insuficiêntes para descrever o fenômeno jurídico. Razão pela qual propõe, no seu Globalismo Jurídico (ou teoria global do direito), investigá-lo a partir de dois modelos complementares denominados macrodireito e microdireito.
O resultado é surpreendente. Pela via formal, G. Gomes dos Santos consegue separar as espécies normativas (princípios e regras) dos tradicionais "postulados normativos", que ele passa denominar de postulados jurídicos, bem como formula um novo conceito de Direito Positivo.
O esboço da teoria global do direito será publicado por este blog em 3 partes: "Globalismo Jurídico - I, II e III". Segue, então, a I.



Globalismo jurídico: a nova face do direito (I)


Gildson Gomes dos Santos.
Advogado militante em Ribeira do Pombal (BA).
Bacharel em Direito pela FMU/SP.
Especialista em Direito Público pela UNIFACS/BA
Consultor jurídico.



Chego ao segundo lustro do III Milênio com as esperanças renovadas. Depois de quase duas décadas debruçado sobre as letras jurídicas finalmente concluo que 1) a efetividade do direito é diretamente proporcional ao grau de eficiência da autoridade que o executa, como também que 2) a ordem jurídica é plenamente descritível, o que lhe confere, em definitivo, status de objeto científico. Essas questões, por serem mal solucionadas ao longo dos tempos, sempre ficaram em suspenso no âmbito da epistemologia jurídica.

A formulação do conceito de direito, como de qualquer outra ciência, depende do modelo filosófico ou epistemológico adotado como ponto de partida. O labor científico daquele que aborda o fenômeno jurídico a partir de um ângulo essencialista (ontológico) decerto não culminará numa definição semelhante à de quem investiga o direito pela via procedimentalista (formal). A essa afirmação poder-se-ia opor a objeção segundo a qual é exeqüível chegar-se a um mesmo ponto por caminhos diferentes. Contudo, tal ilação só faria sentido se o ponto de chegada pelo caminho essencialista fosse alcançável. Já no Séc. XVIII fomos informados por KANT de que a essência do ser é inatingível. (1) Essa inferência, até hoje inabalável, tem forçado o gênio humano a construir outras soluções destinadas à explicação científica dos fenômenos sociais, notadamente do direito.

O fenômeno jurídico é multifacetado. Talvez em função dessa característica tenha se tornado objeto de teorias as mais díspares possíveis. Certas abordagens adotam enfoques flagrantemente exclusivistas e unilaterais; outras já procuram envolver suas múltiplas faces pela via integrativa, mas a partir de métodos inadequados. Por exemplo, há quem veja no direito certa dose de artificialismo (globalismo), (2) mas há quem sustente sua naturaleza (quantismo). (3) Direito é também emoção (globalismo), (4) mas há quem nele destaque somente sua face racionalista (jusnaturalismo). (5) É alógico (analitismo), (6) mas há quem o queira lógico (positivismo). (7) É, também, finalístico (pós-positivismo), (8) porém não falta quem sustente sua pureza (normativismo) (9) É contrafactual (globalismo), (10) mas há quem o vislumbre factual e axiológico (culturalismo). (11) É, final e principalmente, comunicação (pragmatismo), (12) mas tem sido descrito pela doutrina tradicional como um dado que repousa num código lingüístico (egologismo). (13)

Esse catálogo não é, por óbvio, numerus clausus, isto é, não esgota todas as teorias sobre o fenômeno jurídico. É apenas exemplificativo. Certamente existem várias outras escolas ou correntes doutrinárias que poderiam ser invocadas em favor do argumento supra, a exemplo do realismo, (14) do pragmatismo norte-americano. (15) No entanto o que realmente importa neste passo é por em relevo a complexidade do direito, enquanto objeto de investigação científica, a fim de pontuar em relação a si a insuficiência de abordagens de perfil ontognosiológico, analítico, lógico ou meramente estrutural.

Não faltam estudos a sustentarem que o enfoque ontológico peca, sobretudo, por fazer tabula rasa da nuance lingüística do fenômeno jurídico. De outra parte, os enfoques analíticos, lógicos ou estruturais, conquanto investiguem o direito positivo a partir da linguagem, desprezam o aspecto pragmático desta, mantendo suas descrições apenas nos patamares sintático e semântico do discurso. No atual estádio do conhecimento, todas as teorias jurídicas até aqui desenvolvidas, sem dúvida, representam interessantes esforços que marcaram a evolução da Ciência Jurídica. Contudo é necessário que avencemos um pouco mais em busca de uma grade epistemológica com capacidade de envolver o direito em toda sua multidimensionalidade.

Cumpre esclarecer que abarcar o direito em todas as suas dimensões não significa aqui adotar como parâmetro de abordagem o modelo essencialista do saudoso jurista paulista MIGUEL REALE, que, pela via de um artifício lógico por ele próprio batizado de dialética da complementaridade, tenta ligar três supostas dimensões do fenômeno jurídico: norma-fato-valor, culminando na consagrada teoria tridimensional do direito, (16) variante do denominado culturalismo jurídico, a qual, a meu ver, cuida-se de episteme absolutamente improdutiva, na medida em que transcende as fronteiras do sistema jurídico.

Ora, fato e valor, ao menos sob o prisma científico, são objetos estranhos ao direito, o primeiro é estudado pela Sociologia e o segundo pela Axiologia. A propósito, se fora para levar a sério o apontado deslize metodológico realeano, a mim cumpriria sustentar que o direito está mais para contrafactum do que para factum. Forçoso é admitir-se que as idéias, principalmente quando já se encontram cristalizadas na consciência da comunidade, tendem sempre a resistir, ainda que, manifestamente, apresentem-se superadas.

Atualmente vivenciamos uma espécie de era pós-metafísica do pensamento, que prefiro denominar de Era Global, mas não falta quem procure se agasalhar no conforto da tradição ontológica, alguns por convicção ou dificuldade de evoluir conceptualmente, é certo, outros por preguiça de reflexionar. A resistência ao novo, como forma de maturação do processo de transição das idéias, até que não deixa de ser positiva, todavia não pode servir de álibi para justificar vetustos equívocos ou retrocessos no campo do saber jurídico.

Entendo que modelos de índole unilateral ou exclusivista, e mesmo aquelas correntes culturo-integralistas de viés metafísico ou essencialista são redutores do fenômeno jurídico. Insuficientes, portanto, para descrevê-lo metodicamente. De modo que paradigmas que se atêm a descrever os elementos do sistema jurídico nos níveis morfológico (estrutural), sintático (lógico) ou semântico (conteúdo) ou, conjuntamente, até este último nível encontram-se superados pela teoria procedimental do direito também denominada de pragmático-discursiva formal, edificada sobre um pano de fundo semiótico da linguagem. (17)

A procura obsessiva do homem pelo fundamento das coisas não tem data para findar. Talvez seja até mesmo um movimento eterno. Como observa HUMBERTO ECO, e KANT, por sinal, já o fizera muito antes dele, a referência ontológica forte (material) é inatingível, mas ela opera para o ser humano como um horizonte a ser atingido. Sempre vai haver alguém tentando alcançá-lo, procurando descobrir a essência do ser. (18)

A teoria procedimental do direito não se ocupa com essa questão filosófica. Para o procedimentalismo jurídico, que procura descrever a realidade tomando a linguagem ordinária como mediadora, o importante não é saber o que é o direito, mas tão-somente como ele se apresenta e opera no mundo da vida. Sob o prisma do pensamento pós-metafísico, o coeficiente ontognosiológico tolerável do direito, necessariamente, encerra-se nos lindes de uma referência ontológica fraca (formal) edificada basicamente a partir do Lebenswelt (19) de EDMUND HUSSERL ou das formas de vida de LUDWIG WITTGENSTEIN (II). (20)

Pela via pragmático-discursiva formal, o direito positivo apresenta-se no mundo da vida como um subsistema ético destinado ao controle de interações humanas, que se manifestam em forma de ações lingüísticas e não-lingüísticas. Com efeito, é um equívoco supor que o direito controla ações humanas. Não é função do direito controlar quem quer que seja. A ordem jurídica apenas autoriza o controle de determinados comportamentos. Mas quem o exerce são as autoridades competentes para executar a lei. É o que demonstrarei mais adiante.

Embora o direito-objeto seja uno (21) o seu estudo sistemático comporta, no mínimo, dois níveis de abordagens complementares entre si. Diante disso, por imperiosa necessidade metodológica, proponho que o fenômeno jurídico seja investigado holística e analiticamente nas formas de um macrodireito, que espelha a estrutura global da ordem jurídica com suas conexões ou entrelaçamentos, e de um microdireito, que desce à gênese do ordenamento jurídico para investigar a estrutura e concatenação dos componentes de seu repertório.

De fato, o macrodireito se ocupa com a estrutura integral do sistema jurídico, a partir dos dois componentes que formam o seu repertório: as normas e os postulados (estes enquanto condições de possibilidade de conhecimento, no sentido kantiano do termo), (22) ambos formalmente jurídicos. Por essa razão, como bem requer a clareza científica, (23) convém que se evite rotular o ordenamento jurídico de "sistema normativo", já que as normas não são os únicos elementos de sua estrutura. Por seu turno, o microdireito volta-se para a composição elementar das normas e dos postulados jurídicos, descrevendo suas microestruturas e respectivas implicações lógico-discursivas no interior do sistema.

No que interessa aos propósitos da Ciência Jurídica, convém afirmar que o direito enquanto objeto especulativo tem uma estrutura bidimensional ou, mais apropriadamente, dual. O direito não é tridimensional como sustenta MIGUEL REALE, tampouco possui quatro dimensões como já cheguei a defender influenciado pela concepção culturo-integralista. (24) Segue-se então que direito não é fato, não é valor, não é fenômeno, não é linguagem, não é fim. O direito positivo ou direito-objeto reduz-se tão-somente ao binômio norma/postulado jurídico. Explica-se. (...).

- (Segue em breve, na II Parte) -
____________
(1) KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. São Paulo: Martin Claret, 2002.

(2) SANTOS, Gildson Gomes dos. A imoralidade nos tribunais: um discurso sobre a interpretação judicial da moralidade administrativa. Salvador, UNIFACS, 2005 (monografia inédita).

(3) TELLES JUNIOR, Goffredo. O direito Quântico: ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica. São Paulo: Max Limonad, 1985, 6ª ed..

(4) Cf. nota 2.

(5) BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995.

(6) COELHO, Fábio Ulhoa. Lógica jurídica, uma introdução: um ensaio sobre a lógica do direito. São Paulo: EDUC, 1994, 2ª ed.

(7) BOBBIO, Norberto. Op. cit.

(8) ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2005, 3ª ed.

(9) KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Coimbra: Armênio Amado, 1984, 6ª ed.

(10) Cf. nota 2.

(11) REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito: situação atual. São Paulo: Saraiva, 1994, 5ª ed.

(12) FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Teoria da norma jurídica ensaio de pragmática da comunicação normativa. Rio de Janeiro: Forense, 2000, 4ª ed; HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, 2ª ed, vol. 1, 2.

(13) DINIZ, Maria Helena. Conceito de norma jurídica como problema de essência. São Paulo: Saraiva, 2003, 4ª ed.

(14) DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. São Paulo: Saraiva, 1991, 3ª ed.

(15) Idem.

(16) Cf. REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito: situação atual. Op. cit.; Idem. Fundamentos do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, 3ª ed.

(17) HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, 2ª ed, vol. 1, 2.

(18) ECO, Humberto. Kant e o ornitorrinco. São Paulo: Record, 1998, pp. 51e ss.

(19) “Mundo-da-vida”, no idioma alemão.

(20) Por todos, ARAÚJO, Inês Lacerda. Do signo ao discurso: Introdução à Filosofia da Linguagem. São Paulo: Parábola, 2004; HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Op. cit.
(21) KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Op. cit.

(22) A respeito do conceito de postulado, por todos cf. ÁVILA, Humberto Bergmann. A distinção entre princípios e regrase a redefinição do dever de proporcionalidade. Rio de Janeiro: Revista de Direito Administrativo (RDA) nº 215/151-179, Renovar, 1999.

(23) MADISON, James. Os artigos federalistas. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1993, p. 268.

(24) Cf. SANTOS, Gildson Gomes do. Op. cit.


Referência Bibliográfica deste Artigo (ABNT: NBR-6023/2000):

SANTOS, G. Gomes do. Globalismo jurídico: a nova face do direito. Blog do Gomes, Ribeira do Pombal, novembro, 2006. Disponível em: http://pombalnoticias.blogspot.com. Acesso em: xx de xxxxxxxx de xxxx (substituir x por dados da data de acesso ao site)

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